quinta-feira, 21 de abril de 2022

Celacantos não mudaram/evoluíram durante mais de 400 milhões de anos? Isso refuta a Teoria da Evolução?


 No senso comum, celacanto é conhecido como um peixe que surgiu há aproximadamente 400 milhões de anos e, desde aí, não sofre nenhuma alteração ou, se sofreu, foram mínimas. Isso é muitas vezes utilizado por pseudociências como criacionismo “cientifico” ou criptozoologia para sustentar suas afirmações, argumentando que “é um peixe que se acreditava extinto desde a era dos dinossauros (Era Mesozoica) e foi achada viva na década de 1930”, ou “se ele não mudou desde 400/66 milhões de anos (varia dependendo do caso, já alguns se referem a quando surgiu e outros aos fosseis mais recentes), como a evolução é real? Ele não evoluiu?”, entre outros. Entretanto, essas afirmações, além de falaciosas, se baseiam numa má compreensão do tema, seja porque a pessoa só conhece superficialmente, com base no senso comum, ou não se importa em verificar se as informações estão corretas e passa desinformação achando que estão certas. A seguir vou tentar tanto explicar mais claramente sobre o tema e também desmentir tais falácias e desinformações. 


História da "redescoberta" do celacanto vivo 


 Em 1938, o capitão Hendrik Goosen, da pequena embarcação de pesca Nerine, retornou ao porto de East London, África do Sul, depois de uma pesca de arrasto entre os rios Chalumna e Ncera. Telefonou para uma amiga, Marjorie Courtenay-Latimer,  uma curadora do pequeno museu de East London, para ver se ela queria examinar o conteúdo da captura em busca de algo interessante, entre esse conteúdo estava um estranho peixe que ele separou para ela. 

 Não conseguindo encontrar uma descrição da criatura em nenhum de seus livros, ela tentou entrar em contato com seu amigo, o professor James Leonard Brierley Smith, mas ele estava ausente no Natal. Já que não foi possível preservar o peixe, ela o enviou a um taxidermista.  

 Quando Smith voltou, ele reconheceu o peixe como um tipo de celacanto. Smith nomeou a nova espécie como Latimeria chalumnae, sendo seu gênero, “Latimeria”, uma homenagem a Marjorie Courtenay-Latimer, e seu epíteto específico, “chalumnae”, como referência às águas em que ele foi encontrado. Os dois descobridores receberam reconhecimento imediato, e o peixe ficou conhecido como um “fóssil vivo”. Um tempo depois, em 1997 foi descoberto uma nova espécie menor e amarronzada na Indonésia, que foi nomeada Latimeria menadoensis


O que é um celacanto?


 Diferente do senso comum, quando falamos coloquialmente "celacanto" (em inglês "Coelacanth") não estamos falando exatamente de um gênero (taxonômico) ou espécie de peixe (mesmo que exista o gênero Coelacanthus, que, ironicamente, é muito mais desconhecido pelo senso comum), mas sim de um grupo mais abrangente e extremamente diverso de peixes com "nadadeiras lobadas". 


Grupos associados à celacantos


 Existem dois grupos que são normalmente associados a celacanto. Um deles, e o mais comum, é Actinistia, um grupo de peixes sarcopterígios (Sarcopterygii) que surgiu no início do Devoniano, há aproximadamente 419 milhões de anos, com espécies antigas que saem da forma típica de celacantos recentes, como Miguashaia


https://www.researchgate.net/figure/A-time-scaled-phylogeny-of-Actinistia-plotted-against-International-Chronostratigraphic_fig4_349631865


 Outro grupo, que, aliás, está incluído dentro de Actinistia, é Coelacanthiformes. Esse grupo surge também no início do Devoniano, mas um pouco depois. Esses são os celacantos com as “formas típicas”, mais parecidas com os de hoje.


https://www.researchgate.net/figure/Result-of-the-first-phylogenetic-analysis-based-on-35-actinistian-taxa-and-109_fig7_280776055


 Os celacantos tiveram uma grande diversificação durante o triássico e cretáceo, com as maiores espécies de celacantos, como Mawsonia gigas, e algumas que se destacam por serem bem fora do padrão, como Foreyia maxkuhni. A família dos celacantos atuais, Latimeriidae, provavelmente surge no Triássico. 

 Hoje é bem sabido que celacantos não são ancestrais nosso, mas sim são importante para compreender nossa evolução a partir de peixes de nadadeira lobada não-tetrápodes, mas por que disso? Porque eles são os sarcopterígios que mantem mais características primitivas vivos, sendo assim, tem, por exemplo, extremidades menos derivadas, ou seja, mais similares a esse “primeiro” sarcopterígio do que nós, tetrápodes, ou peixes pulmonados (Dipnoi).


O que é evolução? 


 O que é evolução? Como defini-la e por que ela (supostamente) parou com fósseis-vivo? Evolução pode ser definida como "mudança na frequência das características numa população ao longo das gerações" ou "descendência com modificação". As modificações surgem a partir de mutações genéticas, que podem ou não ser "vantajosas", ou seja, garantindo um maior sucesso reprodutivo e adaptativo. Dentro da Evolução existem vários mecanismos, como a própria seleção natural e seus tipos*, proposta originalmente por Darwin, deriva genética* ou fluxo gênico*. Então evolução, num sentido biológico, não se refere à uma progressão, o caminha para algo melhor, não busca um ápice. Na verdade refere-se à diversas modificações que produzem características que podem ou não ser selecionadas. Uma forma mais correta de representar esse evento é com uma forma similar a ramificações de uma árvore ou teias.


Esqueleto de um gênero de celacanto, o Rhabdoderma.


Fósseis-vivo


"Fóssil-vivo" é um termo coloquial*, não científico, usado para se referir a seres vivos que durante muito tempo não sofreram grandes mudanças morfológicas. Celacantos, caranguejos-ferradura (Xiphosura/Limulidae), tubarões (Selachimorpha), Ginkgos, entre outros, são alguns dos grupos de seres vivos mais usados como exemplo de "fósseis-vivos". Dentre esses, o celacanto é um dos piores exemplos de “seres que (supostamente) não mudaram”, já que é um dos que mais sofreram mudanças. Caranguejos-ferradura seriam muito menos pior, por exemplo, mas celacantos são muito mais famosos entre criacionistas, aparentemente. 


Imagem que representa a história geológica e morfológica de caranguejos-ferradura em todo o Fanerozóico
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/feart.2020.00098/full


 Existem animais que evoluem em um ritmo mais "lento". Todos os seres vivos evoluem, mas não significa que o façam no mesmo "ritmo/constância". No caso dos celacantos, eles mantiveram basicamente o mesmo "plano corporal" (bauplan) durante milhões de anos, e algumas pesquisas indicam que eles podem ter tido uma evolução mais "lenta". Não se mantiveram idênticos, imutáveis, etc., como alguns mal informados ou mal-intencionados afirmam. A Teoria da Evolução não prevê que as espécies vão mudar com a mesma "constância", não prevê que "um bicho vira outro", as mudanças vão depender muito das pressões seletivas que eles sofrerem e das mutações que surgem.


Fóssil de uma folha de Ginkgo com uma folha de Ginkgo moderno.
https://www.bbc.com/news/science-environment-38057741


 Com essas informações agora fica mais claro que sim, celacantos evoluíram, não são seres que permaneceram imutáveis durante milhões de anos, acabamos de desvendar um mito popular que envolve esses "fósseis-vivos". Os celacantos do mesozoico diferem dos de hoje, e os do paleozoico diferem dos do mesozoico e dos de hoje, não são as mesmas espécies, não são os mesmos gêneros, e, em alguns casos, nem mesmo as mesmas famílias de celacantos.

 Dentro do grupo dos celacantos temos muitas espécies, distribuídas em muitos gêneros, e não apenas um que surge no devoniano e não mudou até hoje ou uma espécie que surgiu no fim da era mesozoica e manteve-se a mesma até hoje, isso é uma espantalho, usado principalmente por criacionistas, na tentativa de refutar a teoria da evolução.


Quão diferentes podem ser os celacantos extintos?


A-Miguashaia bureaui; B-Diplocercides heilostockiensis; C-Serenichthys kowiensis; D-Allenypterus montanus; E- Rhabdoderma elegans; F-Latimeria chalumnae (uma das espécies de celacanto atual)


 Com o objetivo de mostrar diretamente esses diferentes táxons e ficar visualmente mais notório suas diferenças, vou mostrar algumas delas, mas saiba que existem outras além dessas.


-Foreyia maxkuhni


Representação paleoartística de um Foreyia maxkuhni.

 Esse peixe viveu onde hoje é a Suíça, durante o triássico médio, há uns 240 milhões de anos atrás. Esse é um celacanto muito curioso, pois sai da imagem padrão que temos de celacanto. 


Um cladograma simples mostrando alguns exemplos de Actinistia. O celacanto da direita se trata do Foreyia maxkuhni.

-Gênero Coelacanthus


Fóssil de uma espécie pertencente ao gênero Coelacanthus, o C. granulatus.

 Essa uma espécie do gênero Coelacanthus, com fósseis encontrados do Carbonífero até o início do Triássico. É possível notar que até o gênero Coelacanthus é diferente dos Celacantos atuais.


Representação de outra espécie do gênero Coelacanthus, C. whitea.
arte de mamatlisham (https://www.deviantart.com/mamatlisham)

  -Gênero Mawsonia


Representação paleoartística de Mawsonia sp.
http://www.sci-news.com/paleontology/mawsoniid-coelacanth-texas-10273.html

 Conviveu com o famoso Spinosaurus e tem fósseis conhecidos no nordeste brasileiro, em locais de água doce e salobra do final do cretáceo.

Uma comparação do esqueleto de um Macropoma, gênero de Latimeriidae, parente dos celacantos atuais (gênero Latimeria), e o gênero Mawsonia, um Mawsoniidae.


 Esse gênero de celacanto tem os maiores conhecidos, com a maior das espécies sendo Mawsonia gigas, que superaria os 5 metros. 

Comparação de tamanho entre um humano atual (Homo sapiens) e dois Mawsonia gigas.

-Holopterygius nudus


Holopterygius nudus (arte de Nix Illustration).


 Esse é um celacanto basal do devoniano médio, há 385 milhões de anos atrás, na atual Alemanha. Esse celacanto com forma de enguia era bem pequeno,  tendo até 7 cm de comprimento. Holopterygius pode ser um exemplo de convergência evolutiva com enguias, possivelmente ocupando o mesmo nicho ecológico.


-Rebellatrix divaricerca


Rebellatrix divaricerca (arte de Nix Illustration).



Celacanto que viveu durante o Triássico inferior, entre 251 e 247 milhões de anos atrás, na atual Columbia Britânica, Canadá. Tinha adaptações para um nado rápido, o que pode ter ajudado esses peixes a capturar suas presas. 


-Gênero Miguashaia 


Miguashaia ()



-Allenypterus montanus





-Gênero Chinlea 





-Rieppelia heinzfurreri






-Megalocoelacanthus dobiei






-Gênero Diplurus









-Gênero Undina

Undina penicillata





-Gênero Libys








-Gênero Whiteia






-Gênero Rhabdoderma






-Gênero Axelrodichthys

Axelrodichthys araripensis



Explicações:


*Existem alguns tipos de Seleção Natural, como Seleção Natural Disruptiva, Estabilizadora e Direcional, além de outros tipos de Seleção, como a Seleção Artificial ou a Seleção Sexual.

https://brasilescola.uol.com.br/biologia/tipos-selecao-natural.htm

https://youtu.be/yUuwP3tPvPQ

https://pt.wikipedia.org/wiki/Seleção_estabilizadora

*Deriva genética:

https://pt.khanacademy.org/science/biology/her/heredity-and-genetics/a/genetic-drift-founder-bottleneck

*Fluxo gênico:

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Fluxo_g%C3%AAnico

*Uma coisa que tem que ser esclarecida é que evolução também não ocorre simplesmente ao acaso (totalmente aleatório) ou na sorte, posso aprofundar em um ou mais posts futuros.

*"Fóssil vivo" se trata de um termo coloquial e não cientifico, e que, infelizmente, ainda causa muita confusão em leigos. por que esse termo não é muito recomendável: https://www.theguardian.com/science/2016/jul/06/why-its-time-to-make-living-fossils-extinct

*MAA é uma abreviação de Milhões de anos atrás, em inglês MYA (ou apenas MA), Million years ago.


Referências:

  

Casane, D., & Laurenti, P. (2013). Why coelacanths are not ‘living fossils’ A review of molecular and morphological data. Bioessays, 35(4), 332-338. 

  

Kin, A., & Błażejowski, B. (2014). The horseshoe crab of the genus Limulus: living fossil or stabilomorph?. PLoS One, 9(10), e108036. 

  

Bicknell, R. D., & Pates, S. (2020). Pictorial atlas of fossil and extant horseshoe crabs, with focus on Xiphosurida. Frontiers in Earth Science, 8, 98. 

  

Lustri, L., Gueriau, P., & Daley, A. C. (2024). Lower Ordovician synziphosurine reveals early euchelicerate diversity and evolution. Nature Communications, 15(1), 3808. 

  

Briggs, D. E., Siveter, D. J., Siveter, D. J., Sutton, M. D., Garwood, R. J., & Legg, D. (2012). Silurian horseshoe crab illuminates the evolution of arthropod limbs. Proceedings of the National Academy of Sciences, 109(39), 15702-15705. 

  

Holder, M. T., Erdmann, M. V., Wilcox, T. P., Caldwell, R. L., & Hillis, D. M. (1999). Two living species of coelacanths?. Proceedings of the National Academy of Sciences, 96(22), 12616-12620. 

 

Dutel, H., Galland, M., Tafforeau, P., Long, J. A., Fagan, M. J., Janvier, P., ... & Herbin, M. (2019). Neurocranial development of the coelacanth and the evolution of the sarcopterygian head. Nature, 569(7757), 556-559. 

  

Mathers, T. C., Hammond, R. L., Jenner, R. A., Hänfling, B., & Gomez, A. (2013). Multiple global radiations in tadpole shrimps challenge the concept of ‘living fossils’. PeerJ, 1, e62. 

  

Cavin, L., & Guinot, G. (2014). Coelacanths as “almost living fossils”. Frontiers in Ecology and Evolution, 2, 49. 

  

Nagalingum, N. S., Marshall, C. R., Quental, T. B., Rai, H. S., Little, D. P., & Mathews, S. (2011). Recent synchronous radiation of a living fossil. Science, 334(6057), 796-799. 

 

Zhu, M., Yu, X., Lu, J., Qiao, T., Zhao, W., & Jia, L. (2012). Earliest known coelacanth skull extends the range of anatomically modern coelacanths to the Early Devonian. Nature Communications, 3(1), 772. 

 

Brito, P. M., Martill, D. M., Eaves, I., Smith, R. E., & Cooper, S. L. A. (2021). A marine Late Cretaceous (Maastrichtian) coelacanth from North Africa. Cretaceous Research, 122, 104768. doi:10.1016/j.cretres.2021.104768 

 

Ferrante, C., & Cavin, L. (2023). Early Mesozoic burst of morphological disparity in the slow-evolving coelacanth fish lineage. Scientific Reports, 13(1), 11356. 

 

Cavin, L., Mennecart, B., Obrist, C., Costeur, L., & Furrer, H. (2017). Heterochronic evolution explains novel body shape in a Triassic coelacanth from Switzerland. Scientific Reports, 7(1), 13695. 


Fontes e leituras/vídeos recomendáveis:


https://pt.khanacademy.org/science/biology/x324d1dcc:more-about-evoluation/x324d1dcc:artificial-selection/a/evolution-natural-selection-and-human-selection#:~:text=A%20sele%C3%A7%C3%A3o%20artificial%2C%20tamb%C3%A9m%20chamada,como%20acontece%20na%20sele%C3%A7%C3%A3o%20natural. 

  

https://www.theguardian.com/science/2016/jul/06/why-its-time-to-make-living-fossils-extinct 

  

https://pt.khanacademy.org/science/biology/her/heredity-and-genetics/a/genetic-drift-founder-bottleneck 


https://www.youtube.com/watch?v=6AddNL5e_Gc  

  

https://www.youtube.com/watch?v=Kyp9X7ubP9Q&t=96s  


https://www.paleozoobr.com/actinstios-actinistians 



Obs.:

-Se sentirem a necessidade de corrigir ou complementar algo façam por favor!